Câncer: uma mudança de olhar

Câncer: uma mudança de olhar

As formas das doenças aparecem da maneira como a sociedade encara o fenômeno saúde-doença. De acordo com Sontag S. (1984), as doenças associadas a catástrofes, chamadas de “doenças-metáfora” foram diferentes ao longo da História, levando em conta a carga simbólica e moral que carregavam. O câncer é visto como uma das “doenças-metáfora” do século XX.

O Câncer sempre veio carregado com o peso de ser uma doença com poderes malignos, exclusiva do mundo moderno e relacionada culturalmente ao comportamento desordenado das pessoas. Sontag S. (1984), nos fala que até mesmo as palavras utilizadas para se referir ao tratamento eram muito associadas à linguagem militar, como “bombardeamento” referindo-se ao tratamento radioterápico; e “matar células”, ao tratamento quimioterápico.

Historicamente, o câncer vem sendo sempre associado a experiências ruins. Frequentemente, referem-se aos acontecimentos de uma sociedade, como a violência, o consumo de drogas, a corrupção e a desigualdade social como os “cânceres sociais”.

Apesar de a medicina ter evoluído nas formas de prevenção, diagnósticos e tratamentos do câncer, tais construções socioculturais persistem até hoje e trazem consequências desastrosas, tanto do ponto de vista emocional, como da parte prática e concreta direcionada ao enfrentamento do adoecer por câncer.

Segundo Françoso (1993), devido aos significados culturais dados ao câncer, muitos adultos, por terem a representação da doença como fatal, antecipam a possibilidade de perda por morte desenvolvendo um processo denominado luto antecipatório – processo pontuado pela incerteza e desinvestimentos. O processo de perda muitas vezes se inicia no momento do diagnóstico.

De acordo com Simonton et al (1978), é indiscutível o prejuízo causado pelas expectativas negativas da sociedade, pois as crenças preconcebidas existentes em relação ao câncer geram malefícios diretos ao paciente.

Com relação à palavra câncer, devemos levar em conta a questão do seu estigma social, o que leva muitos pacientes a enxergarem sua cura como um milagre e não como um fenômeno possível de acontecer em virtude dos grandes avanços da medicina. Percebemos que a cura, enquanto realidade, ainda não foi incorporada ao repertório cultural.

De acordo com Gomes et al (2002), a abordagem do câncer envolve sentimentos que são difíceis de serem administrados, tanto por parte dos profissionais como por parte das pessoas em geral.  O medo da dor, resignação diante da percepção e crença de que sua doença terá um desfecho fatal e a negação de que a própria doença existe são alguns dos aspectos emocionais que envolvem toda a trajetória de ser portador de câncer.

Estas construções históricas direcionadas ao câncer aparecem também como um dificultador para a detecção precoce do câncer e consequentemente com isso a obtenção de melhores prognósticos. Muitos pacientes protelam a busca pelo profissional especializado por alheamento com relação a esta doença ou até mesmo por temerem a possibilidade da comprovação de um diagnóstico não desejado. Fica claro que esta conotação negativa da palavra câncer é desfavorável para o desenvolvimento de atitudes preventivas.

Ao se fazer a comunicação diagnóstica ao paciente, verifica-se a formação de uma crosta protetora, que são os mecanismos de defesa utilizados por ele para lidar com a notícia inicial. Aos poucos, o ideal é que juntamente com um profissional especializado, o paciente consiga expressar suas emoções, elaborar e aceitar cada etapa a ser vivenciada. Porém, a qualificação negativa que encobre o significado da palavra câncer desenvolve um efeito negativo na conduta do paciente, e este acaba mantendo esta crosta protetora para um tempo além do devido. De acordo com Dóro et al (2004), o que era para ser uma defesa benéfica, torna-se fraqueza e dificuldade de acesso à própria fonte de forças.

Por que não desconstruir estas representações simbólicas tão negativas da palavra câncer que estão intactas há anos, mesmo tendo a medicina e a ciência passado por grandes avanços e revoluções tecnológicas?

É importante que toda equipe multidisciplinar que acompanha o paciente oncológico e seus familiares compreendam e conheçam as significações deste diagnóstico no contexto sociocultural de cada um deles, auxiliando-os na desconstrução destas representações.

O papel dos profissionais de saúde e dos formuladores de políticas preventivas na desconstrução do binômio câncer e morte também é de extrema importância. A prevenção e detecção precoce do câncer só serão incorporadas à vivência das pessoas quando estes vislumbrarem possibilidades efetivas de melhores prognósticos.

Concomitante aos avanços tecnológicos conquistados para o controle do câncer é necessário igual avanço na área de comunicação e conscientização a toda população. De acordo com Gomes et al (2002), o controle do câncer, como uma realidade possível, necessita ser incorporado ao repertório cultural da vida em sociedade.

Doro et al (2004), em seu estudo sobre a representação simbólica do câncer, reafirma a necessidade de um trabalho social de conscientização da experiência e dos recursos de tratamentos atuais, para que desta forma o conhecimento científico vença a negatividade histórica desta  doença.

É preciso um trabalho com o nosso paciente que envolva todos os níveis do ser humano, incluindo seus aspectos físicos, psicológicos, espirituais, seus relacionamentos e meio ambiente.  A maior fonte de stress vivenciada pelo ser humano hoje é a perda da esperança em viver sua vida de maneira que lhe seja significativa. Ao desmistificarmos a palavra câncer e tirar todo peso negativo que ela carrega, com certeza estamos dando novas oportunidades de buscas e conquistas ao nosso paciente.

Referências Bibliográficas:

1-      Sontag S. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal; 1984

2-      Françoso, L. P. C., 1993. Enfermagem: Imagens e significações do Câncer Infantil. Dissertação de Mestrado, Ribeirão Preto: Escola de enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

3-      Simonton, O. C.; Simonton, S. M. & Creighton, J. L. Com a Vida de Novo. São Paulo: Summus, 1978.

4-      Gomes R, Skaba M.M.V.F., Vieira R.J.S.. Reinventando a vida: proposta para uma abordagem sócio-antropológica do câncer de mama feminino. Caderno Saúde Pública 2002 18(1): 197-204.

5-      Dóro M.P., Pasquini R., Medeiros C.R., Bitencourt M.A., Moura G.L.. O câncer e sua representação simbólica. Psicologia: Ciência e profissão – v. 24 n.2, Brasília, 2004.

 

Autor:Dra. Flávia Santos Dumont Sorice

CRP 04/17129

Psicóloga Clínica, graduada pela Universidade FUMEC – B.H., Pós Graduada em Psicologia Hospitalar pela Universidade FUMEC – BH. Psicóloga da Clínica Oncocentro de M.G.

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